Conceito relativo
Programas de computador: a outra face da pirataria
Pedro Antonio Dourado de Rezende*
A Associação Brasileira de Software (Abes) está realizando uma campanha de
conscientização contra a pirataria de softwares, principalmente contra a
instalação de softwares sem a devida licença em computadores novos.
Neste caso, o comprador assume o risco de multa altíssima, se seu micro for
alvo de fiscalização. Porém, ao comprá-lo, ele deveria saber que existem
opções para instalações gratuitas legítimas. Sistemas de software livre,
tais como o GNU/Linux ou o FreeBSD, tem licença de uso gratuita. Nesse caso
o conceito de pirataria é outro.
Pirataria com software livre é quando algum programador ou empresa se
apropria do código fonte do programa para incorporá-lo em algum outro
programa que não seja livre. Quanto a este tipo de pirataria, são os
associados da ABES que se vêem tentados, como a raposa com as uvas, e não o
consumidor. Pirataria de software é pois um conceito relativo, derivado do
modelo de negócio em torno dele.
Houve tempo em que a indústria operando o modelo hoje ainda predominante de
produção e negócio de software, baseado na comercialização da licença de
uso, fazia vista grossa à pirataria do consumidor doméstico. Com isso os
consumidores desenvolviam hábitos e dependências que os fidelizariam à
marca dos produtos, através de sua vida profissional.
Porém, com a fadiga deste modelo, revelada em custos exorbitantes de
produção, licença e administração de direitos autorais, o combate à
pirataria virou moeda de troca em acordos internacionais, como WIPO, OMC
(Trips), ALCA, etc, e em lobbies legislativos a favor da asfixia ou da
criminalização de modelos alternativos, como o do software livre, por meio
de leis e iniciativas como DMCA, UCITA e TPCA, nos EUA, para falar das mais
importantes.
Os custos explodem porque, no modelo proprietário, a evolução do software é
ditada pelo fluxo de caixa do produtor, e não pela aculturação do
consumidor. O produtor precisa criar novas necessidades para o software, na
forma de novas funcionalidades, e levar o consumidor a acreditar que
precisa delas.
Enquanto a propaganda bastava para induzir esta crença, ninguém se sentia
tolhido. Acontece que, como todo programador experiente sabe, falhas e
vulnerabilidades crescem exponencialmente com o tamanho do software, e
portanto junto com ele a relação preço/qualidade, de forma que propaganda
já não basta.
Se agora quisermos comprar um novo computador com uma licença legítima do
Windows 98 não achamos quem o venda, enquanto sua pirataria é pintada como
crime hediondo. Muitos técnicos especializados em Windows acham que a
versão 98 ainda é a melhor na relação custo-benefício, pelo que cabe a
pergunta: por que não podemos optar hoje por uma versão legítima anterior à
do Windows XP? É como proibir a venda de carro usado para garagem nova e
descontinuar a "produção de compactos" feitos de bits. Os bits,
diferentemente das suas garagens, não envelhecem enquanto a gasolina
encarece, fazendo desta proibição uma armadilha.
As licenças da linha XP são verdadeiros contratos de aluguel. Mas piores,
Pois são contratos de adesão aos quais o comprador adere sem conhecer preço
e data de vencimento das prestações seguintes. Não bastasse isso, são
contratos que dão à produtora o direito de alterar sorrateiramente dados em
arquivos do licenciado, como na gravação de links do Office, e de implodir
remotamente sua instalação se ele usar o software para publicar material
que "denigra" os produtos, serviços ou parceiros da empresa, como na
licença do FrontPage.
São, assim, muito parecidos com os contratos que certos fazendeiros
avarentos oferecem a peões indefesos recrutados para trabalho na roça, que
vez por outra aparecem na mídia como exemplos de trabalho escravo.
Esse tipo de licença de software é muito mais lesivo do que os anteriores e
não resistiria a isenta análise pela luz da jurisprudência do direito
contratual brasileiro, muito menos à do nosso código de defesa do
consumidor, não sendo à toa que, nessas licenças, o foro para pacificação
de disputas é o do produtor. Temos aí um paralelo gritante com os
extertores do modelo escravagista da agroindústria, com o advento da era
industrial.
De acordo com a Abes, uma pesquisa da Price Water Coopers revela que se o
índice de pirataria de software brasileiro, atualmente em 56%, fosse
reduzido para o equivalente dos países desenvolvidos, em torno de 25%, o
setor deixaria de perder R$ 1,7 bilhão em faturamento e quase 25 mil novos
empregos seriam gerados, com aproximadamente R$ 1,2 bilhão arrecadados em
impostos diretos e indiretos. Mas alto lá.
A indústria não perde 1.7 bilhão por ano. Este valor corresponde à sua
expectativa de lucro caso quem pirateia acima da média não tivesse
alternativa, nem para escolher software livre nem para instalar software
pirata. A conta honesta seria outra. Desses 56%, quantos instalariam
software livre ou deixariam de comprar o computador se não pudessem
piratear? Descontados estes, o que a indústria perde é apenas o valor das
licenças restantes. Valor que não se obriga a corresponder às expectativas
de lucro das empresas, mas ao que o poder aquisitivo dos agentes econômicos
consegue absorver, como bem mostra a atual crise da telefonia
privatizada.
Ademais, esses 25 mil novos empregos não seriam gerados todos aqui. A
maioria, e certamente aqueles que demandam formação tecnológica, seriam
gerados na empresa produtora, que arrecadaria o grosso desse 1,7 bilhão.
Aqui ficariam uns poucos empregos de estafetas e apertadores de botões. Ao
passo que se investisse em software livre, a economia brasileira estaria
gerando todos esses empregos aqui mesmo, inclusive os de base tecnológica,
pois a indústria de serviço ao software livre tende naturalmente a
expandir-se para o desenvolvimento, já que o código é aberto e as demandas
dos clientes são específicas. Sem falar na cultura e autonomia
tecnológicas.
Quanto à arrecadação extra de impostos, 1,2 bilhão é também o que o governo
gastou no ano com licença de uso de software proprietário, segundo seus
próprios levantamentos. Se optasse por software livre, o mesmo montante
poderia ser economizado tanto pelo contribuinte como pelo estado, que
poderia investi-lo em educação, saúde, etc, ao invés de onerá-lo à
sociedade já asfixiada por um arroxo fiscal inusitado, atrelado a juros
abusivos fixados por agiotas globais. E pior, onerado através de contratos
sem licitação que em cinco anos acumulam, só com licença de software e
serviços à microsoft, despesa irregular de R$ 15,8 bilhões, segundo a
revista Isto É de 5/12/02.
Mesmo se este montante for contestado por revendedoras, o que importa é o
modus gastandi. A solução salomônica seria o uso de software livre onde
possível, e software proprietário onde necessário.
Mas estamos em meio a uma guerra ideológica na esfera jurídica da
propriedade intelectual, onde os produtores de software proprietário acabam
de consagrar o direito de cobrarem pelo uso dos padrões digitais
inteligíveis aos seus programas.
A sentença condenatória da microsoft por prática monopolista predatória,
lavrada no dia 1 de novembro último pela juíza Coleen Kollar-Kottely
(United States District Court for the District of Columbia: "Microsoft Case
- 11/01/02"), gera tal jurisprudência, o que tende a levar à asfixia ou ao
isolamento o software livre, destruindo o fantástico edifício semiológico
de interoperabilidade na esfera digital alcançado pela internet de
hoje.
O exercício deste direito seria como o de um cartório que cobra não só
pelas escrituras que lavra, mas que passa a cobrar também, de qualquer
tribunal, advogado ou despachante, pelo uso do "jargão cartorial" em
qualquer documento, sentença, petição ou escritura que venham a produzir,
podendo discriminar nesta cobrança contra aqueles de quem não gosta.
O custo adicional de licença na compra de um novo micro pode ser zero se os
softwares forem livres, tais como os sistemas operacionais GNU/Linux e
FreeBSD, os pacotes para escritório OpenOffice, versões anteriores do Star
Office, os navegadores Netscape, Opera, o banco de dados MySQL, e muitos
outros. Mas pode dobrar o preço da compra, ou mesmo tornar este custo
imprevisível ou imponderável ao longo do tempo, se o comprador quiser
aderir às "promoções" da microsoft, do tipo "A licença do XP custa só 20%
da licença perpétua do Windows 98" (fica faltando dizer que é só a primeira
prestação do aluguel). Quando a ABES se pronuncia em defesa dos seus
associados agindo como se o software livre não existisse faz propaganda
enganosa com o apoio autista da grande mídia, e deveria responder por este
tipo de falsidade publicitária.
Revista Consultor Jurídico, 5 de dezembro de 2002.
Pedro Antonio Dourado de Rezende é doutorando em matemática pela
Universidade de Brasília (UnB), ATC PhD em Matemática Aplicada pela
University of California at Berkeley e coordenador do programa de extensão
em Criptografia e Segurança Computacional da UnB.
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